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Seu João:



“Eu fui criado em um lugar pior do que a prisão, a Febem”.

É com esta afirmação que João Maria Rodrigues, 66 anos, conhecido como ‘seu’ João, introduz sua história. Quando criança, sua mãe, Maria de Jesus Rodrigues, traiu o seu pai, João Carlos Vasconcelos, com outro homem. Quando descobriu a traição, João Carlos assassinou o amante e foi preso, deixando sua esposa e seus três filhos sem fonte de renda.

Maria de Jesus não conseguia se estabelecer em um emprego por causa dos filhos. Ela conseguiu a oportunidade de trabalhar e ser agregada em uma propriedade, mas com a condição do dono de que abrisse mão de dois de seus filhos, já que ele não aceitava ter tantas bocas para sustentar.

Dito e feito. A mãe entregou o filho mais velho para o juizado e a filha do meio para uma família adotiva. O mais velho era João, na época tinha nove anos e foi encaminhado à unidade de Campo Comprido e, posteriormente, à Arapoti, no Paraná, em 1961.

Em sua primeira noite no centro correcional, ele foi verificar se os seus pertences haviam sido encaminhados para sua cela e sua cama. Ao chegar lá descobriu que muito do que trouxe consigo fora furtado. Ele exclamou:

-Isso aqui é escola de ladrão!

Foi o pretexto para o funcionário que o acompanhava a dar-lhe um tapa tão forte que ele diz ter “desmontado”. E assim, ele foi introduzido na violenta disciplina do reformatório.

O cotidiano da instituição era rígido. “Tinha horário para tudo, até para ir ao banheiro”. Os funcionários organizavam duas filas, uma para tomar banho e outra, para o dormitório. Os que queriam tomar banho ingressavam na fila correspondente e então os funcionários trocavam o destino das filas “só de maldade”.

No refeitório, a porção que se recebia era mísera, o suficiente apenas para preencher as mãos em concha, sem direito a repetição. “Era comum estar conversando com um menino e de repente ele desmaiar, de tão pouco que davam pra gente comer.”

Durante as refeições não era permitido escorregar os talheres ou o prato seria removido, e nem olhar para os lados ou iria apanhar. A única coisa permitida era olhar para baixo e comer em silêncio.

Havia uma horta, cultivada do lado de fora do reformatório por um proprietário de origem Holandesa. Os internos não tinham permissão para comer nada que crescia ali, mas à noite, eles roubavam uma porção da horta para complementar a parca nutrição que recebiam ao longo do dia.

A instituição também segregava racialmente os detentos. Brancos não se misturavam com negros nem mesmo para compor um time de futebol. Na época, os times dos internos tinham o hábito de punir quem errava em campo com um “croque” na cabeça desferido por todos os membros restantes.

Os espancamentos dados por funcionários eram brutais e calculados:

- Davam com pedaço de pau em todo lugar, só não batiam na sola do pé ou na cabeça que matava, mas no resto lascavam o cano.

Após os espancamentos, largava-se o detento caído no chão, deitado no próprio sangue, fezes e urina. À vista de todos para ser tido como exemplo.

Uma punição mais moderada do que os espancamentos era a utilização de uma tira de borracha para bater na palma da mão dos infratores. Os internos tinham que apoiar os dois braços sobre a mesa, com as palmas abertas para o funcionário arremeter a tira sobre elas. O castigado não podia demonstrar dor, se encolhesse, mesmo que ligeiramente, a mão, a punição ficaria ainda pior com mais golpes.

Quando as mães vinham visitar os filhos, elas só podiam levar alguns biscoitos, se levassem dinheiro ou algo mais valioso, esses bens seriam roubados dos menores pelos maiores.Há noite, durante o sono, se alguém na cela roncasse, levaria um golpe sem dó para parar. “Foi aí que eu aprendi a dormir de lado.”

Existiam também os casos de abuso sexual por parte dos próprios funcionários, que eram, na verdade, internos mais antigos.

- Menino branco que era mais vistoso, loirinho dos olhos azuis, os funcionários faziam na marra vira a bicha deles, se não virasse apanhava.

Quando um garoto branco adentrava na Febem, ele já podia imaginar o cruel destino que o aguardava. ‘Seu’ João, por ser negro, foi poupado desse tipo de violência.

Um episódio marcante do qual ele se lembra foi o de um funcionário chamado Rubéolo de Sousa. Ele se destacava pelas roupas e pertences caros incompatíveis com o salário de um funcionário. Um dia, ‘seu’ João e mais um outro colega surpreenderam Rubéolo de Souza tentando estuprar a cozinheira da instituição. “Já tinha rasgado a roupa dela e tudo”. Conta que os dois tentaram impedir o estupro, “apanhei tanto! fiquei com a camisa encharcada de sangue.”

O funcionário foi denunciado posteriormente pela cozinheira. Com o testemunho dela e dos dois meninos, Rubéolo foi preso e disse a João:

-Quando eu sair da cadeia eu te mato!

Foram oito anos confinado nesse ambiente, de 1961-1969, com três tentativas de fuga, as duas primeiras mal sucedidas. Na terceira, conseguiu finalmente escapar da Febem e fugiu para a cidade de Tibagi, onde reencontrou o pai e morou com ele durante um tempo.

Atualmente, ‘seu’ João trabalha como pedreiro, mora em Guaxupé, Minas Gerais. Foi traído pela primeira esposa, mas o exemplo do pai lhe ensinou uma lição e não se vingou. Atualmente, namora com outra mulher e tem uma filha de seu outro casamento.

Seus pais já morreram e nunca mais ouviu falar da irmã, não sabe nem se ainda está viva. Também nunca mais ouviu falar do funcionário Rubéolo de Sousa. Acredita-se que já está morto.

Apesar de todo o tratamento recebido na Febem, por incrível que pareça, ele não apenas ressalta os pontos positivos da instituição, como também acredita que pode reabilitar os internos, aos quais sempre se refere como alunos, desde que estes estejam realmente dispostos a isso.

A assistência à saúde era de qualidade, segundo ele. “Não tinha essa história de que médico não podia te atender, se tivesse um problema ele te atendia na hora.” Outro ponto que ele destaca é a exibição de filmes educativos. “Só passavam filme instrutivo.” Por fim ele completa:

-99% dos que estão lá não se recuperam. Eu me recuperei, quem não recuperou foi porquê não quis.

Quando interrogado sobre como é viver em um lugar como esse, ele responde com um ligeiro sorriso:

-Alguns dias você ri, alguns dias você chora.

‘Seu’ João ainda declara que tem vontade de fazer uma visita ao seu antigo lar:

-Queria ir só pra ver como é que tá hoje em dia!


Maio/ 2013.

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